quinta-feira, maio 08, 2008

Paralelos delitos



Ele... ...no cume da sua vulgaridade, soletrou-a campo árido, devastada por ventos sem norte. Talvez por isso, enrolou um cigarro na erva dos dias, interrogou-se do porquê do papel, do seu papel, grosseiramente alargado nas margens que colou com a saliva da memória. Salina. Fumou-a numa ânsia de posse. Também numa ânsia de morte. Jugo, carrasco e presa numa só inspiração e numa só noite, numa só nuvem, expirada. Contudo, em segredo, escondeu os seus restos de cinza, numa pequena caixa de dvd. Não fosse um dia a querer rever. Rasgou sem ler as cartas que ela lhe escrevera e por uma enviada, as fez nada.Fada ou negra visão já ninguém sabia. O nevoeiro a tinha levado.





Ela... suou-o. Suou-o por todos os poros arquipélagos do seu ser, por todas as ilhas inventadas por ele no seu corpo côncavo.Num arrasto de malas de porão contra o cais, suou-o pela pele, pelos olhos e numa revolta contra o vento, descoseu os botões das casas e pregou-os nos seus olhos d'água. Não mais me navegarás. Adormeceu 100 luas.Quando o soar do trompete irrompeu, lúcido e veemente, anunciando o amanhecer,
o mar de lava que a percorreu acalmou as sereias das suas células fêmeas. Já não pertences ao meu reino e eu já não sou uma estrela no teu.Rogo-te a escuridão do desconhecimento, do vazio em mim.


E por muito que eu, contadora desta história tivesse pedido a ambos um "low profile", o mesmo me foi negado. Em vão os tentei convencer de que o tom surrealista e melodramático já estava fora de uso, na normalização europeia dos concretos da vida.


Ele virou-me as costas. Ela, abriu um livro e apontando para a página 46, me deixou ler: "as ideias, todos sabemos, não nascem na cabeça das pessoas. Começam num qualquer lado, são fumos soltos, tresvairados, rodando à procura de uma devida mente."

Desisti. Tinha sido eu própria a oferecer-lhe o livro de Mia Couto.

sexta-feira, abril 11, 2008

Autópsia de nós

















Repara que só tive a coragem criteriosa de nos autopsiar, quando auscultei o coração e me apercebi que já não havia esperança de vida em nós.
.
Repara que antes disso, eu não te submeti à frieza da gaveta onde te mantive depois, ao estupor dos membros, nem ao fio de sangue que me escorria da alma.

Nunca antes me tinha submetido ao álcool etílico, nem tão pouco fermentado sentimentos, nos açúcares que me criaras no ventre.
.
Acredita que não usei o bisturi em vão, nem tão pouco por vaidade.
.
A necrópsia do corpo de paixão que já não habitamos foi um grito urgente das minhas entranhas, na ânsia de saber de que enfermidade tinhamos padecido.
.
Acredita-me. Só me atrevi quando antevi o silêncio final, a cruz do jazer sem paz e senti no corpo o peso das pedras de dor.
.
Reminiscências de um amor sem ciência.
.
Libertados estamos, acredita, usei de todo o cuidado, tu sabes como na cozinha sempre misturei bem condimentos e como fundia, com mestria, sabores.
.
Tratei de fazer tudo pela ordem inversa.
.
Dar a cada um de nós a essência do antes, remeter no depois, embrulhado em alfazema, cada corpo à sua forma original.
.
.
.
.
Agora, só nos pode restar o céu.



quarta-feira, novembro 01, 2006

Renascer

O dia esgotava-se nas águas calmas da marina.

Despidos, os veleiros, rabujavam verdetes de quilha, esponjosos, pelos cabos dos mastros.

-Como é renascer? Tu deves saber...conta-me!-pediu a mulher à minha frente, sorrindo.

Fogem-me os olhos para o farol, mãos cruzadas sobre a mesa.

Sorrio também, perante a ausência de palavras.

Já era noite quando as palavras se soltaram.

Renascer é sentir que não existe qualquer nó cego que nos prenda ao chão.

É levarmos connosco os nós, os laços, a terra...

Renascer...é abandonar o vaso que nos limitava a razão.

sexta-feira, setembro 29, 2006

AnZoL


Se um dia vires um homem com

fome,


não

lhe dês um peixe...





Ensina-o a pescar...

segunda-feira, setembro 18, 2006

Demasiado tarde...

Quando dei conta era demasiado tarde.
Já os espinhos me tinham nascido ao longo do dorso alongado e,
embora adormecidos, eu sabia que eles um dia acordariam,
para resgatar a autonomia perdida.


Quando dei conta, era realmente, demasiado tarde.
Já definia territórios na lei da legitimidade das coisas e tinha como

meus, os domínios de um mar que nunca conhecera.
Já os meus olhos, de cor indefinida, se fixavam nos vidros do aquário,
numa tentativa punjente de libertação.
De fuga, às limitações a que os peixes palhaços me submetiam,
à primeira vista, inofensivos, coloridos e afáveis brincando macios,
em anémonas dançantes.



Extemporâneamente me apercebi da inevitabilidade da mudança,
da necessidade das escamas, guardiãs da alma.
























Quando dei conta de mim, percebi por fim, que eu tinha morrido lentamente dentro de um aquário de sal e quem ocupava, agora, este corpo, era o meu peixe balão.

sexta-feira, setembro 08, 2006

Serenidade koi


Já era noite quando chegou a casa.

Cansada, deixou cair a mala sobre a cama, despiu-se rapidamente e correu para o duche...

Deixou que a água fria lhe doesse na pele e pacientemente esperou que a temperatura subisse, olhando absorta, as gotas de água que se despenhavam em cascata nas suas mãos abertas...

Ritualmente esfregou com força os músculos doridos pelo dia e deixou que o perfume da espuma subisse até ao seu cérebro, torturado...

Passou o exfoliante pela pele, numa tentativa teimosa de renovação de células e deleitou-se com o branco dos turcos em que se envolveu...

Saiu, deixando que a nuvem de vapor perfumado se espalhasse pelas paredes e de forma indiferente, vestiu as suas velhas calças de algodão e a sua camisola larga...acendeu as velas, ligou a aparelhagem e sem paciência para escolher um cd, decidiu-se pelo "Oceano Pacifico"...

Abriu a janela que dava para o pequeno jardim, aspirou o perfume da noite e por fim sentiu a sensação de paz próxima...deixando a janela aberta de par em par, dirigiu-se à cozinha e preparou a sua chávena de café, pegou na lata de comida para peixe e entrou pela pequena porta rodeada de heras e hibyscus amarelos, para o seu mundo encantado...desceu os três degraus e sentando-se no último, soube que aquele seria um momento mágico...ainda com a chávena de café na mão esquerda, com a direita espalhou os pequenos grãos de alimento pelo lago e sorriu às karpas koi que devoravam famintas o jantar tardio...foi bebendo lentamente o café, deixando a pouco e pouco a sua mente libertar-se de todas as contrariedades, desejos, frustrações e tensões...lentamente esqueceu as notícias da guerra que nenhum acordo, até agora, conseguira travar, as imagens dos mortos, dos escombros, da destruição...do caos, dela.

Os pequenos peixes ziguezagueavam pela água fresca, enchendo de cor e movimento as folhas dos nenúfares e dos papiros frondosos...

Como se já muitas vezes tivesse encenado aquela noite, olhou uma vez mais o seu jardim...as hortênsias azuis, as rosas, as pedras graníticas, o suor dos anos em adubo. Em gota. Percorreu ávida a parede de pequenas flores brancas e perfumadas que separavam o seu espaço do dos vizinhos...e brincou com as heras que serpenteavam no ar...

Lembrava-se ainda, de quando tudo era só terra seca, antes dos jasmins, antes dos bambus do lago, antes das alegrias da casa e das buganvílias...antes do rodondedro... lembrava-se da esperança, semeada em canteiros, lembrava-se da sua força enterrada em raízes.

Depois, da sua primavera em flor.

Olhou as lanternas que há muito ninguém acendia, e fez desenhos de pó na teia onde se tinha perdido...sabia agora o caminho a percorrer e a lógica dos seus passos, para ela era a coisa mais simples do mundo...desse mundo estranho e bizarro, onde ninguém se entendia, perdidos pela ambição desmedida e a vaidade fútil...

Surpreendemente não lamentou outros bens nem se lembrou de outros valores.

Reteve nas pupilas o jardim encantado e foi nele que se deitou.

Desejou por breves momentos que o mundo parasse e o tempo também.

O tempo nunca parou.

Na manhã seguinte, embalou as suas roupas e saiu serena, sabendo que nunca mais voltaria.

Só as karpas poderiam entender.

quarta-feira, julho 19, 2006

o gato

Enquanto o gato me olhava
atónito do espanto meu,
subi a rua apressada,
levada pelo vento
da fúria.
Encontrei um velho de bengala,
que empurrei
para dentro do autocarro
e enquanto o gato se lambia longamente,
descobri que o que me faltava

era uma bengala.
Para me empurrar
para a vida.

Levantei os olhos
e olhei o gato.
Para lá dos telhados
impostos,
cinzentos,
agora lambia
o doce leite,
lambia o tempo,
indiferente aos outros,

lambia feridas e nódoas de pó,
lambia presentes desfeitos
em sombra.
Entrei no centro
e comprei um perfume
um perfume bengala,
que me ajudou a subir
mais escadas.
Num gesto mecânico
olhei para trás
para o gato
que ficara a lamber-se...passo a mão pelo cabelo
descubro o pelo eriçado.

Imperioso,
amaciar o cabelo
e a vida,
para ganhá-la

com uma bengala de perfume,
trocado que foi
o pau santo.
O gato olha-me
semicerradamente...
Não foge nem se entrega.

E enquanto saio protegida com bengalas
de perfume e disciplina na cabeça,
o gato
já desperto para o dia
espreguiça-se ao sol.
Afagado o ego,

o gato,
felina entro em casa.
Nos bolsos escondidas
as bengalas
as garras
de que me tinha
maquilhado
socorrido.


sábado, julho 01, 2006

O homem que caiu ao mar

Quando o homem caiu e mergulhou, perdendo-se na profundidade das coordenadas, sentiu dentro dele a felicidade de não pertencer a lado nenhum e em nenhum cais existir uma amarra que o prendesse à terra.

Quando o homem se perdeu dentro do mar que o engoliu, dançou com sereias enlaçado a si mesmo e fundiu-se no canto do Adamastor que era a sua dor...trocou passado por presente e presente por futuro, soluçou no acorde de um beijo de areia, sem o hálito fresco da corrente.

Quando o homem caiu ao mar não ouviu o grito dos outros, a água envolvente protegeu-o de outras vidas, dando-lhe a bênção do esquecimento da sua.
Não ouviu gritos nem acenos viu, festejou sozinho os bancos de coral que lhe feriram o corpo e celebrou de um trago as estrelas que ateavam o fogo em que ardia.

Encontrou meninos que se pareciam ligeiramente com a criança que ele já tinha sido e com esses meninos de mar, chorou todos os pesadelos que tinha escondido em búzios.

Segredou tristezas tecidas em cordões umbilicais e mastigou irónico outros destinos.

Na ânsia de uma valsa com os peixes, espalhou fragmentos de plâncton pelo seu corpo,tentando domar os cavalos marinhos que o galopavam.

Quando, por fim, outros homens o conseguiram trazer para terra e fazê-lo respirar, o homem estremeceu de frio e vomitou na areia os demónios de sal que esculpira, a besta de pedra que o levara ao fundo.